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Full text of "Náufrago; versos lusitanos"

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VERSOS LUSITANOS 

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LIVRARIA EDITORA 

5o,52~Rua QAugusla—Sa,54 



NÁUFRAGO 



VERSOS LUSITANOS 



DE 



O. LO 



AFFONSO^ LOPES-VIEIRA 



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LISBOA 

Parceria ANTÓNIO MARIA PEREIRA 

LIVRARIA EDITORA 

5o,52~Rua C/1ugiista—52, 54 
ANNO DE I 898 



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As Armas, e os Barões assign alados. . . 



Camões. 



E sem ordem meu comer, 
E sem ordem meu sentir, 
E sem ordem meu querer, 
É sem ordem meu viver, 
É sem ordem meu dormir. 



Bernardim Ribeyro. 



Isto pensava, isto escrevo; isto tinha 
na alma, isto vae no papel: que 
d'outro modo não sei escrever. 

Garrett. 



j9e«i4a.i; 



DEDICATÓRIA 



Publicar versos, ó poetas, que loucura ! 
Mostrar aos outros, sem vergonha, uma alma, asaim. 
Vede esses olhos: como os lêem com seccural 
Mas que m'importa? eu quando os fiz sabia-o, sim. 

Moços de Portugal, neste livro heis de achar 
Alguma coisa que sentisseis algum dia: 
Gloria perdida, sonho alto, alma a penar. . . 
E o grande amor da nossa Terra o alumia. 

Têm do meu sangue os versos todos que aqui vádcs, 
Como sahiram, bons ou maus, assim lá vão: 
Livro que eu fiz de minhas fomes, minhas sedes, 
Dizei-o ás ondas, que ellas o entenderão. • . 

D'entre a névoa vereis grandes dias passados, 
Emquanto o vosso sonho asphyxiar n'um bêcco; 
Porque nós somos egualmente naufragados, 
Sonhando índias, e morrendo ao dar em sêcco! 

A vós, o livro que nasceu dos desenganos 
De quem sonhou com o Mar e quiz ser Portuguez; 
É para vós este naufrágio dos vinte annos. • . 
Rapazes d'hoje, este poema é pVa vocês 1 



PORTUGUEZ D'HOJE 



Fui dado á luz em Terra portugueza. 
Sou d^um Povo do mar que canta o fado : 
E d'ahi vem meu mal, minha tristeza, 
Vinte annos velhos, todo o meu cuidado ! 
Sou d'um Povo que sonha, canta e reza, 
Aquelle a que deitaram máo olhado . . . 
Sou o que morre, o ultimo, o do fim, 
Sou o Portuguez d'Hoje : agora vim. 



Fui dado á luz em Terra de desgraça, 
O' portuguezes n'este mundo, sós ! 
Evocae, gente d'hoje, certa Raça, 
D'aonde descendemos todos nós. 



6 Náufrago 

Vento do mar, que tudo despedaça . . , 
Qu'é das sombras amigas dos Avós ? 
Bons Cavalleiros e Navegadores, 
Olhae as nossas dores, as nossas dores ! 



Dizem os velhos: — gente nova, fazes 
Horror á gente ! Poetas, sois coveiros ! — 
Velhos da minha edade, onde ha rapazes ? 
Primaveras tolhidas, ó janeiros ! 
Comnosco as dores jamais fizeram pazes ! 
Somos navegadores e cavalleiros 
Sem mar, sem fé, sem braços pVa uma espada, 
Somos os d'hoje, os últimos, os nada. 



Outros o mar já todo navegaram, 
Outros souberam já ganhar o céo. 
As nossas almas todas naufragaram, 
Nossa índia de sonhos se perdeu ! 
Ai de nós todos ! onde nos ficaram ? 
Ai de mim ! Ai de mim ! Onde estou eu ? 
Covas do mar, abri- vos ! O' escuras 
Ondas ! Sereis as nossas sepulturas ! 



Náufrago 

(y Portugal do mar, do sol, do amor, 
Montes, pinhaes, ó céo azul sem egual ! 
Todos vamos soífrendo a mesma dôr, 
E morremos também do mesmo mal . . . 
O' Portugal do sol, do mar, do amor ! 
Bôa Terra de Deus ! Bom Portugal ! 
Vede, Senhor : n'aquillo que hoje dêmos. 
Expatriados na terra em que nascemos . . • 



Mar dos naufrágios ! Ilha doiro ! Ir 
Ao acaso ! O piloto é Deus ! AVante ! 
Sol da índia ! Mar verde ! Perseguir 
Esse sonhado sonho, alto e distante . . . 
E depois d'isto tudo, ter de abrir 
Os olhos^ e morrer ! Cantemos ante 
A morte, e seja a morte a nossa gloria : 
E as ondas guardarão nossa Memoria* 



DA MINHA JANELLA 



Avisto agora do meu quarto, pela larga 
Janella que abre sobre a paysagem amarga, 
Este horisonte melancholico de verdes 
Aonde tu, meu coração, todo te perdes. . . 
D'aonde escrevo, á hora mansa das Trindades^ 
Vejo um aspecto de Coimbra: e que saudades 
Accorda em mim aquelle trecho moribundo 
De casas velhas^ olivaes, e a Quinta ao fundo! 
Cada coisa que vejo, ao sol claro ou á tarde 
Quando por traz de Santa Clara o sol inda arde, 
Tam familiar se me tornou, se fez comigo, 
Que cada choupo que entrevejo é meu amigo. 
Cae para a Cerca, dominando-a, esta janella ; 
E quando a outra me debruço lembra-me ella : 
Porque d'outra não vejo a paysagem antiga 
Que namoro d'aqui, e que é tam minha amiga . . . 



10 Náufrago 

Tarde de Maio. Fora, os rouxinoes cantando. 
Que doce paz ! E, distrahido, eis-me evocando 
Quem outr'ora viveu nesta cella . . . Seria 
Um cavalleiro da leal Cavallaria, 
Que as partidas do mundo andasse, e se fizesse 
Um Santo, e que depois aqui envelhecesse . . . 
Bons frades ! Fontes d'agoa a cantar nos pomares 
Das cercas, sol no ceo, descansos, puros ares. 
Dar esmolas, resar. . . 

Que bom viver assim ! 



Quando deixei a minha casa e pYa aqui vim, 

Esta abobada, a cella, a igreja abandonada 

E este ar de magoa que se queixa resignada; 

Esta janella, d'onde vi, molhado d'oiro. 

Num céo verde d'outomno, um sol de máo agoiro; 

Esta passagem para mim desconhecida, 

(Era no outomno. . .) tam tristinha, tam sem- vida; 

A estrada da Beira entre salgueiros finos ; 

Os sinos d'oiro de Coimbra, crystallinos; 

O rio em baixo onde subia, azas abertas. 

Alguma barca que evocava Descobertas} 



Náufrago 1 1 

Echos perdidos de canções de raparigas 

Que me chegavam como sombras de cantigas ; 

Os pores-de-sol cheios de côr; um cão que uivava 

Quando a noite cahia ... A fonte que chorava 

Junto d'um cedro que furava o ar macio; 

Aquelia curva excepcional que faz o rio 

Ao fundo, além. . . As tristes arvores da Lapa; 

Esta tristeza do Ar, a cor da minha capa; 

Essa arvore que dava á paysagem exangue 

A nota extranha dos seus braços côr de sangue; 

As JJrsulinas com seu ar branco de asylo, 

Como um convento d'um romance do Camillo . . . 

Tudo isto, ó meu Deus! me dava uma impressão 

De me morrer alguém dentro do coração! 

E saudades de Casa. . . O meu longínquo amor! 

Se chegava á janella e olhava. . . era peior: 

Era como se eu respirasse no ar 

Lagrymas que depois tivesse de chorar. 

Que máos agoiros: lembro agora com ternura 

Uns versos que então fiz p'ra a minha sepultura . . . 

Recebia uma carta e ficava a tremer: 

Uma desgraça? Deus do ceo! Que irei eu lêr?. . . 

Era um mal que me vinha e sem eu saber d'onde! 

E á hora então, Jesus! em que o bom sol s'esconde 

E os sinos vibram, e as cores se desvanecem 



12 Náufrago 

E os namorados devagar seu sonho tecem. . . 
Naquella hora, egual a esta, o que eu sentia 
Eram vontades de morrer! 



E esta agonia 
Este mal (que era o mal dos que sentem de mais) 
Vinha do ar, vinha da cor dos olivaes. 
Vinha d'isto que é agora o meu amor: d'aquella 
Paysagem triste que entrevia da janella. 
Sobresahou-me, antes que os olhos costumados 
A verem sol, adivinhassem seus cuidados, 
E torturou-me quando a vi, a vez primeira, 
Da minha meza, aqui, sentado na cadeira. 
E quando olhava para fora, para a ver, 
Odiava-a! Que ai de mim, fazia-me morrer! 



Mas pouco e pouco costumei-me a vê-la assim; 
Vi a sua dor que se apegava tanto a mim, 
Comprehendi-a, puz-me a amá-la de repente, 



Náufrago i3 

A gostar d'ella assim, resignada e doente. 

Já me não faz chorar se a vejo com amor; 

Dá-me vontade de dizer-lhe: Estás melhor? 

Amo essa triste companheira, do meu quarto. 

E em minhas raivas, em meus tédios, quando farto 

D'andar por fora aos encontroes, aqui voltava, 

Como lhe queria! Como a olhava! Como a amava... 

E parece também que de tanto a olhar, 

De tanto a ver, tanto a sentir, de tanto a amar, 

Nos entendemos, nos sentimos, nos amámos! 

E um choupo d'acolá diz-me um adeus, com os ramos.,. 



o FADO 



Fados de Portugal, em suspiros e ais, 
Fados que sois a nossa alma ! Tristes fados 
Que de tristezas e saudades me fallaes, 
Amargurados, suspirados, arrastados. . . 



Cantigas do fado ! Aonde 
Viram outras parecidas ? 
Quanta desgraça não esconde 
O fado das nossas vidas. 



' *•* 1 ■ . ^ ■ 



i6 Náufrago 

O' ^míos roucos, ó cantigas da desgraça ! 
Banzas chorosas, onde falia um coração ! 
Fados do meu paiz, traduzindo esta Raça! 
Versos errados tam cheiinhos d'emoção . . • 



Portuguezes, portuguezes 
D'este Reyno desgraçado ! 
Adivinháveis reveses, 
Porque inventastes o fado. 



Fados que sois a viva imagem doestas vidas, 
Quanta paixão ! Quanta emoção ! Quanta saudade l 
Musica trágica, tocada ás despedidas, 
Onde chora a gemer nossa fatalidade ! 



Dia d'ámanhã ! Futuro ! 
'Que m'os importa saber ? 
Leva-me a Sorte seguro. • . 
E seja o que Deus quizer. 



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Náufrago 1 7 

Tiaha de ser! Tinha de ser, gente perdida! 
Naufragámos. . . Adeus, Raça que estás no fim. 
E ninguém foge á sua sorte nesta vida. 
Nem ao que tem de ser! Tinha de ser assim. . . 



A gente, logo ao nascer^ 
Tem uma estrella que diz 
Se fortuna se ha de ter, 



I Se se ha de ser infeliz. 



O' cegos que cantaes o grande e horrível crime! 
E por herdades, por aldeias arrastaes 
Vossa lamuria, onde não sei que dôr se exprime 
Na banza que suspira e na voz que dá ais . . . 



O' ceguinhos das violas, 
Parae-me á porta um stantinho: 
Hei de encher-vos as sacolas 
E dar-vos pão, dar-vos vinho. 



* 



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j8 Náufrago 

O' nau da índia carregando pedras finas, 
Velas christãs que vão a dar a volta ao mundo ' 
Resou-te a tempestade os agoiros e as sinas 
Que diziam que um dia ias parar ao fundo! 



E a nau que partiu divina 
Teve o seu destino mau. 
Ninguém foge á sua sina,^ 
Seja homem, seja nau. 



Dizem que o fado o inventaram no alto mar 
Mareantes que lá andavam á ventura . . . 
Só elles, em verdade, o podiam crear, 
Elles, que vivem sobre a sua sepultura! 



Cantemos na despedida 
PVa onde nos leva a Sorte, 
O fado da nossa vida, 
O fado da nossa morte! 



CARTA AO ALBERTO 



(Da aldeia^ em férias grandes) 



Vim de Coimbra. Estou agora nesta 
Terra piquena, que não vem no mappa. 
Ao meio-dia durmo a minha sesta, 
E agazalha-me o sol como uma capa. 



Estou longe da côr que tu me vês 
Quando em Coimbra sou sr. doutor 
E nos aborrecemos nos cafés. . . 
Ando moreno como um pescador! 



20 JSláufrago 

A minha vida lá, aos solavancos, 
Não me deixa saudades ; é um engano. 
E appetecem-me aqui os fatos brancos, 
Farto d'andar de luto todo o anno! 



Sou outro aqui. Talvez isto me venha 
Da paysagem que tem sol e saúde. 
Ali em cima fica uma montanha 
E adormecem-me as agoas do açude. 



Inda hoje de manhã me disse alguém 
D'aqui, que de piqueno me conhece : 
— Os ares de cá teem-lhe feito bem . . . 
Estimo vê-lo bom, como parece. 



Não teem doença os campos, e não são 
Como os de Coimbra, que me affligem tanto 
Aqui ha hortas, vinhas, tudo é são 
E ha fontes d'agoa fria em cada canto I 



Náufrago 2 1 



A minha casa tem escada exterior, 
E luz ao sol a sua cal tão viva ! 
N'uma parede o Santo protector, 
E um poço co'a roldana primitiva. 



Ha um caminho ali p'lo monte acima 
Com castanheiros que refrescam o ar ; 
Que lindo é, no tempo da vindima, 
Vêr-se d'ali a gente a vindimar ! 



E no valle, entre terras amanhadas, 

O rio corre socegadamente. 

E ha casas pobresinhas, com latadas, 

Com um ar ingénuo que interncce a gente. 



Levo a vida serena que convém 
Ao corpo e á alma, que anda bem lavada : 
Passeio nos caminhos, durmo bem. 
Não faço versos e não penso em nada ! 



2 2 Náufrago 

Brinco com os petizes do Manoel, 
Um é meu afilhado, é o mais novinho : 
E diverte-me immenso andar com elle 
E dar- lhe a minha benção de padrinho. 



Converso ás vezes com os lavradores 
Sobre a vindima, e o tempo, em que eu insisto. 
E olho os campos que estão promettedores 
Com um ar grave de quem sabe d'isto! 



A's quatro e meia, aqui, chega o correio, 
Vou espera-lo, para me entreter. 
Vem uma carta, ás vezes, e eu leio . . . 
Mas não respondo, massa-me escrever ! 



Aquella Mariquitas de quem eu, 
Lembras-te ? te fallei no anno passado ? 
Está mais bonita, mais mulher, cresceu. . . 
E eu passo aqui por ser seu namorado. 



Náufrago 23 

Para a semana ha fesla nesta terra, 

Na Senhora do Monte; lá irei. 

E ha promessas, andores, canções na serra . . . 

Gomo é lindo ! Depois te contarei. 



A' noite leio um livro dos que trouxe. 
Mas o somno depressa vem chegando. 
Fora na estrada, ao longe, muito doce 
Algum carro de bois passa chiando. 



Ladram os cães, longínquos, nas herdades ; 
Ha no meu quarto um cheiro de maçãs. 
E adormeço sem raivas, tempestades, 
Nem o horror de pensar nos amanhãs ! 



Ou então, quando estão todos deitados, 
(Aqui, deita-se cedo cada qual) 
Gemem na minha banza os tristes fados 
Doeste nosso paiz de Portugal. 



24 Náufrago 

E tam felises correm os meus dias, 
E o meu somno é aqui tam descansado, 
Que inda espero pagar em agonias 
Cada dia d'agora, socegado! 



PARA O BRÂZIL 



Partir ! Partir ! Partir ! A terra não dá nada 

Por mais que a regue o suor, por mais que lhe entre a enxada ! 

A fome veio, a pouco e pouco, ao seu cazal : 
A estiagem matou o verde milharal, 

Crestou a vinha, seccou poços, seccou fontes 
E a terra ficou como as pedras dos montes ! 

Partir! Partir! Partir! Uma doença levou 

Tudo o que tinha, que inda assim lhe não chegou . . . 



20 Náufrago 

Que hade fazer ? Que ha de fazer ? À terra dura 
Só lhe pôde servir p'ra abrir a sepultura ! 

Partir ! Partir ! Bem lhe dissera já alguém 

Que ha uma Terra, muito longe, inda p'ra alem 

D^aquelle monte, d'aquelle ar, d'aquelle céo. 
Aonde a trabalhar aquelle enriqueceu, 

E outro ainda, e outro mais. . . Partir! Partir! 
A visão do Paiz chama-o alto, p'ra ir. . . 

Faz uma trouxa, diz adeus á mãe e ao pae, 
Abraça-os a chorar . . . Larga o paquete . . . E vac ! 

E vae, e morre ! E outros vão, e vão ficando ! 
Febre-amarella, que é ceifeira, vae ceifando. . . 

O* Portuguezes que partis, ó Emigrados, 
Das amuradas dos navios debruçados ! 

O' vós que perseguis a fortuna, o Dinheiro, 
Nostálgicos olhando atravez do nevoeiro . . . 

Pobres ! que acarinhaes ao peito sonhos vãos, 
Emigrados, sabei ! sois os nossos irmãos ! 



Náufrago 2 7 

Porque cada um de nós, certo dia, na Vida 
Se foi á cata da fortuna promettida ! 

E não ouviu leaes avisos, bons conselhos, 

Que a nós nos davam, como a vós, os homens velhos ! 

E deixou casa, pães velhinhos que choravam, 
Pelas visões que d'entre a névoa nos chamavam . . . 

E partiu como vós, porque também sonhou 
Algum Brazil, que nunca ! nunca ! nunca achou ! 

E embarcou para lá por um dia de magoas, 
E foi cortando o doido vento, as verdes agoas, 

A' procura ... de quê ? E cheiinhos de dôr, 
Morremos lá, ou se voltamos, é peior. . . 



CANTIGAS 



Por ti perdi o socêgo 
E dizes pVa te deixar ! 
Dize ás agoas do Mondego 
Que não corram para o mar. 



O' meu salgueirinho em flor 
A abanar com o vento, assim 
Pareces o meu amor 
Dizendo-me adeus a mim. 



So Náufrago 

Deu-me uma flor o meu bem 
Que tinha um verso leal : 
Dizia que o amor vem 
Sem que a gente dê por tal. 



Lavadeiras são Marias 
De Jesus, da Conceição. 
Faltei ás aulas três dias . . , 
Culpa têve-a o coração. 



Não quero olhar para a tua 
Carinha d^oiro, que mente. 
Dizem que olhar para a lua 
Faz mal aos olhos da gente. 



Se aqui morrer, meu amor, 
Não ponhas luto também. 
Veste-te assim, d'essa côr, 
Que é a que te fica bem. 



Náufrago 3i 



Quando de ti passo perto 
Finjo não ver, não olhar. 
Mas vaes-te : e fico deserto 
Por outra vez te encontrar! 



Não ponhas a roupa ahi, 
P'ró sol a seccar, tem pena! 
Olha o que elle te fez a ti : 
Foste branca, e és morena. 



O' campainhas de Santo 
António dos Olivaes ! 
Ninguém sente tanto, tanto. . . 
Tocam-lhe : põem-se aos ais. 



Vou-me embora com tristeza, 
Com tristeza sempre vou: 
Que ninguém tem a certeza 
De voltar ao que deixou. 



32 Náufrago 

Pouco tempo dura a rosa, 
Pouco dura o bem-me-quer. 
Quem nasceu desfortunosa 
Sem fortuna ha de viver. 



Vaes-te : e o meu coração fica 

» 

Que se o visses, tinhas dó ! 
Ah, não' haver na botica 
Remédio p'ra quem está só . • . 



O- cabellos apartados, 
Pretos como os d'uma moira! 
Olhos que fostes talhados 
Co'a ponta d'uma thesoira. 



Tenho um dedo que adivinha, 
Quanto disse, aconteceu! 
E diz-me que serás minha 
E diz-me que serei teu. 



Náufrago 33 

Tardes serenas de Maio, 
Trindades vão a bater . . . 
Ponho a capa ao hombro, e saio 
Para uns olhos pretos ver. 



Moreninha do Convento 
Nunca has de professar; 
Quer a alma casamento 
Gomo as rolas querem par. 



Corpinho alto, que eu 
Comparo a uma saudade ! 
O corpo que Deus te deu 
Tem vinte annos d^edade. 



Maria da Piedade ! 
Que nome te foram pôr. . . 
Tu, que não tens piedade 
De mim, que te tenho amor. 



"^4 Náufrago 

Ia eu pVas aulas, disseste 
— Vae tam pallido, que tem? 
Que mal que tu me fizeste ! 
Pensava eu n'isso também. 



Numa parede, acolá, 
Ha um nieho todo em flor. 
Que linda ficavas lá 
Se eu lá te podesse pôr ! 



Ando triste por aqui 
Coimbra, nobre cidade 1 
Perto, não gosto de ti, 
Longe, tenho-te amizade. 



Com amores me amofino, 
Tenho um amor cada mez. 
E' este o triste destino 
D^um coração portuguez. 



Náufrago 35 



PVa a Costa d'Africa, alguém 
Meu coração degradou. 
Se de lá voltar, já nem 
Sabe quem agora sou. 



Adeus montes, adeus Serra^ 
Adeus ludo, tudo, emfim ! 
Raparigas doesta terra 
Lembrae-vos por cá de mim . • . 



'..<tX 



AS NAUS 



Houve outr^ora, ha tanto tempo ! 
E inda me posso alembrar . . . 
Alguém que viveu sonhando 
Um sonho bem singular. 
Tinha d^um lado inimigos, 
D'outra fé, d'outro scismar. 
Com quem andou batalhando, 
Que venceu a batalhar. 
Do outro lado, deante, 
Tinha o mar, o mar, o mar. . . 
Fartou-se de sua vida, 
Fartou-se de pelejar, 
E olhando as Agoas sem fim, 
(Que eram as agoas do mar) 
Para ali ficou sonhando, 
P'ra ali ficou a sonhar . . , 



38^ Náufrago 

Passavam escuras noites, 
(O tempo vae a voar) 
Passavam dias de sol, 
(Quem pôde o tempo agarrar?) 
E elle sem vêr noites e dias, 
Claro sol ou claro luar, 
Não deixava aquella scisma, 
Não parava de scismar, 
lam-lhe longos os olhos 
Por sobre as agoas do mar. . . 
Fez um barco, pô-lo na agoa. 
Que scisma ! Largar, largar . . . 
Diziam outros : « — Não vás, 
O^ doido, vaes-te afogar ! 
Vã cubica de vaidade 
A que Fama usam chamar ! 
Maldito seja quem pôz 
Primeiro um barco no mar ! » 
Mas amanheceu o dia 
Que era o dia de largar : 
Disse adeus aos que ficavam, 
Despediu-se sem chorar, 
E as Naus foram á ventura 
Debaixo do azul do ar. . . 
Levavam a Cruz de Christo 



Náufrago 3§' 

Nas velas brancas, a arfar. 
Que eram brancas como o linho 
Quando se põe a seccar ; 
Levavam nichos á popa 
Com Santos, para as guardar. 
Passaram longas tormentas, 
Estiveram pVa se afundar, 
Viram terras ignoradas, 
Viram coisas de pasmar. 
Dizia o vento, passando : 

— Onde ides, pVa vos levar? 
Diziam, bravas as ondas : 

— P'ra que nos vindes sulcar ? 
E as Naus iam á ventura 

E ao leme o Sonho, a cantar. 
Ilha d^oiro^ ó Ilha d' oiro. 
Que te foram encontrar. . . 
Mas ai! as Naus onde estão? 
Onde foram naufragar ? 
Qu^é do sonho que as levava ? 
Onde é que foram parar ? 
Como o sonho era bonito. 
Como é mao o despertar. . . 
Suas taboas nos pertencem 
PVa as tornarmos a juntar. 



40 Náufrago 

Para as fazermos de novo, 
Para irmos navegar ! 
Para depois nossas Noivas 
Quando a nossa nau voltar, 
(Tam cheiinhas de saudades 
Emquanto por lá se andar . . . ) 
Nos esperarem a todos 
Que vimos do alto mar, 
E juntinhos, casadinhos, 
Gomo a gente se ha de amar ! 
Senhora Santa Maria 
Que estaes em o vosso altar, 
Não nos desperteis do sonho. 
Não nos deixeis accordar ! 
Boa Santa Padroeira 
D'este Reyno, ao pé do mar, 
Mostrae-nos caminhos novos ! 
Sonhos, sonhos, pVa sonhar ! 
Onde estão?. . . Ondas e ventos 
Todas as foram tragar ! 
E as velhas Naus do Passado 
Nunca mais irão ao mar. . . 



A FABRICA 



Vejo d'aqui todo este valle tam verde, 
Do Convento, onde eu sou o ultimo frade. 
Mas até aqui este bom ar se perde 
E não encontro a tranquillidade. 



Mas até aqui, socego, não no acho! 
Ai pobre vida, assim toda a soffrer. . . 
Uma fabrica fica ali em baixo 
E tortura-me: está sempre a ranger! 



42 Náufrago 

Arripia-me: é o mesmo que julgar 

Que rasgo as unhas ou que mordo um lenço 

De manhã ouço-a, logo ao accordar, 

E á noite, Jesus! custa-me immenso! 



E não é só por mim : também me custa 
Por isto tudo que aqui vejo em roda: 
Esta paysagem que o barulho assusta 
E que a fumo asphyxia e incommoda! 



Estrada dos choupos, ó estrada da ^eira, 
Noiva dos rouxinoes, pelo verão ... 
Suja-te toda a sua fumaceira 
E os rouxinoes, agora, fugirão! 



Pobres arvores todas cuspinhadas 
De fumo negro, ó arvores, ouvi-me! 
E ninguém pensa que estragar estradas, 
Quando são lindas, é um grande crime. • 



Náufrago 43^ 



Velha cerca dos Bentos^ onde de antes 
Elles andavam, junto do Mondego, 
Inda tens cedros, flores, agoas cantantes, 
Mas já perdeste, ó cerca, o teu socêgo! 



Rio que passas com areias d'ouro, 

Nem podes livremente ir a chorar 

Que ha machinas que abafam o teu choro . ^ 

Rio! foge depressa para o mar! 



E a fabrica trabalha e não se cansa: 
Vomita fumo e range a engrenagem! 
Pobre Isabel ! que horrível visinhança, 
Assustando de noite a tua imagem. 



Vejo d'aqui a telha de xMarselha 
Do seu telhado e as 'suas chaminés. 
Que horror! ao pé d'esta paysagem velha 
E com o rio ali aos nossos pés. 



44 Náufrago 

Fico-me assim a olhá-la da janella . . . 
Odeio-a, queria-a vêr toda em ruinas! 
A' tardinha, porque só a ouço a ella, 
Já não ouço tocar nas Ursulinas. 



Estou doido! Persegue-me a obsessão 
Da fabrica a ranger, que eu sempre ouço. 
E appeteceme o mar, a solidão, 
Ou ir viver p'ró fundo d^algum poço! 



O' Pátria minha, nau desmantelada, 
Deixa odiosas civilisações ! 
Volta a ser Portugal de capa e espada^ 
De assignaladas Armas e Barões . . . 



E penso então na venturosa gente 
Que viveu sem progresso, sem Vapor, 
Quando havia uma fé segura e ardente 
E havia espadas, e havia amor! 



EXPOSTOS 



Lá vae a Roda girando 
E os Expostos vão entrando. 
Roda extranha, coisas más! 
Nunca a Roda volta atraz . . . 
Poço verde, vão cahindo 
Expostos. . . Menino lindo! 
Deitados á rua, ó nus 
Como o menino Jesus. 
A Roda gira, outro cae ... 
Expostos, o que é ter pae ? 
A Roda gira, outro vem . . . 
Não mamães leite de mãe! 
Sede bemaventurados. 
Quando vos dizem — coitados! 
Expostos d^olhos chorosos. 
Que horror! se sois orgulhosos. . . 



■'■^ít'!.- ' 



46 Náufrago 

Talvez que os pães sejam nobres, 
Ricos ... e os filhos pobres 1 
Ou filhos d^algum peccado. . . 
Esconde, esconde o engeitado ! 
E a Roda vae girando 
E os Expostos vão entrando. 
Um, que entrou em certo dia, 
Ao pescocinho trazia 
Uma fita pendurada, 
Mas nunca se soube nada . . . 
Quem te poz esta fitinha ? 
Quem é a tua mãesinha ? 
Nunca, nunca o saberás ! 
Nunca a Roda volta atraz . . . 
Expostos creados na rua, 
Com olhos como uma lua 1 
Expostos d'olhos em prantos. 
Que sois de Jesus^ dos Santos. . . 
Expostos d^olhos christãos, 
Meus amigos, meus irmãos! 
Irmãos, sim ! que nos foi lida 
Egual sina n^esta vida : 
Fomos todos á procura 
Da Fortuna, da Ventura, 
Cada um a procurou 



Náufrago 4y 



E ella a todos engeitou! 
Por mim sereis bem-amados, 
Expostos, Nús, Engeitados! 



Lá vae a Roda girando, 

E os Expostos vão entrando. . . 



A SENHORA DO MAR, 
OU DAS ONDAS 



(Do convento de San João de DeuSy em Lisboa) 



Sobre as agoas do mar apparecida, 
Na praia as verdes ondas vos puzéram ; 
Num caixãosinho assim fostes trazida 
Por ellas, que serenas se fizeram. 



E numa velha igreja, que ficava 
Ao pé da mesma agoa que vos trouxe, 
Vossa Imagem serena alevantava 
Os olhos, c sorria muito doce. 



x'^ o Náufrago 

Os Navegantes que depois partiam 
11 pelo alto mar se aventuravam, 
De longe com seus olhos vos seguiam 
\\ suas almas vos incommendavam. 



K faziam promessas: ^— Se a revolta 
Agoa não for a nossa sepultura, 
Hemos de vir, boa Senhora, á voha, 
Uma vela oíFertar da nossa altura.— 



E na volta, cansados da peleja 
Dos ventos doidcTs e dos mares falsos, 
Cumpriam a promessa, e em vossa igreja 
Resavam de joelhos, e descalços. 



E depois de viagens descsp'radas 
Muitos vinham render-vos suas graças: 
Que as nuvens que do vento iam tocadas 
Não tinham feito mortes, nem desgraças ! 



Náufrago Sr 

Vosso manto livrava dos perigos 

Do mar, nas noites más, cheias de medos . . . 

E livrava dos ventos inimigos 

E de bater, de noite, nos rochedos. 



Conserváveis, Senhora, aquellas vidas! 
E as esfaimadas naus sem mantimento 
Que iam das agoas brutas impeliidas, 
A porto iam chegar de salvamento. 



Quando os pobres navios naufragavam 
E se faziam todos em estilhas, 
Os náufragos comvosco se apegavam, 
E vós, de longe, obráveis maravilhas! 



Apégo-me comvosco, d'onde vou, 
Doeste mar alto cheio de afflicções ! 
Com tanta fé nunca ninguém rezou. 
Levanto os braços, grito as orações! 



52 Náufrago 

Mas onde estaes? Mas onde estaes agora? 
Procuram-vos meus olhos, não vos acho. . . 
Ninguém vos reza já, boa Senhora! 
A vossa igreja foi deitada abaixo ! 



Então, depois d'ali vos arrancarem 
Vós ouvistes, Senhora, o mar, talvez . . . 
E as ondas a chamarem, a chamarem 
Para com ellas irdes outra vez. 



E outra vez sobre o mar apparecida, 
O' Senhora das Ondas, desterrada! 
Pelas ondas do mar fostes trazida, 
Pelas ondas do mar fostes levada. . . 



DO POETA A UMA SENHORA 
DE QUEM SE APARTAVA 



Deixo-vos longe de mim 
E melhor para vós é: 
Pois que meu mal não tem fim, 
Pégo-vos meu mal, assim 
Estando de vós ao pc. 
Sósinho deve de andar 
Por esse escuro caminho 
Quem os outros faz penar; 
Sósinho deve chorar, 
Deve de soífrcr sósinho. 

Deixo-vos em vossa paz 
Com a mágoa de partir ; 
— Tristeza falta não faz — 
Voltam-me os olhos p'ra traz, 
Não nos quero deixar ir. 



^ 



54 'Náufrago 

Vaeme o coração sahindo 
D'este peito, e vae voltando 
A esse logar tam lindo 
Aonde eu vos ouvi rindo, 
Onde me vistes chorando. 

Deixo-vos, e sem saberdes 
Que os meus dias se quebraram 
Sem vós nunca o intenderdes, 
Porque houve uns olhos verdes 
Que uns verdes olhos amaram. 
Porque apezar de ter 
Em deixar-vos gran receio, 
Muito melhor é morrer 
Do que vêr-vos padecer 
Por causa do mal alheio. 

Deixo- vos, porque tristuras 
Não são para se mostrarem ; 
Porque as nossas amarguras 
Devem de ter sepulturas 
Nos peitos de quem andarem. 
E já qu^eu isto vos digo 
— Que sempre o pensei assim — 
Devo de estar só comigo. 
Pois, Senhora, não consigo 
Esconder meu mal em mim. 



Náufrago 55 



Deixo-vos, para ir ter 
Muitas saudades de cá, 
Quando por lá estiver 
Com quem eu não conhecer 
E não me conhecerá. 
Se eu lá vir amargurados 
Olhos, penso com certeza 
Qu'é porque andam apartados 
D'outros olhos bem-amados, 
E d'ahi sua tristeza. 

Deixo-vos, c vou-me aos ais, 
Cuidado que sempre dura. 
Em triste rua ficaes ; 
Mas se vós nessa moraes, 
Eu moro na da amargura. 
Dizem que é melhor partir 
Do que ficar, — não no sei; 
Sei que ficaes a sorrir, 
Sei que eu, que vou fugir. 
Choro, e sempre chorarei. 

Deixo-vos, olhos amados, 
Porque quando longe for 
Por vós sentirei cuidados: 
E sendo assim tam lembrados 
Hei de ter-vos mais amor. 



SS Náufrago 

Porque, estando longe, a gente 
Ama melhor e mais ama 
Porque então saudades sente : 
Não ha ter alma contente, 
Não ha ter somno na cama. 

Deixo-vos, porque também 
Heis de ver, quando eu partir, 
Que vos faltará alguém: 
Seja do mal ou do bem 
Heis de saudades sentir. 
Saudades, sim; e vereis 
Que pelas noites caladas, 
Também vós, Senhora, heis 
De lembrar olhos fieis 
Que andam em tristes jornadas. 

Deixo-vos, pois ninguém cansa 
De lembrar quem desertou 
Com sua desesperança, 
E levava na lembrança 
A sombra de quem ficou.' 
E, ou ande por lindas terras 
Debaixo d'um lindo céo. 
Ou pelejando nas guerras, 
Ou nos mares ou nas serras. 
Nunca esquece o que perdeu. 



Náufrago 5*j 



Deixo-vos; ao pé de vós 
Outros ficam. E nós vamos, 
Eu e meu coração, sós, 
E lembrando a vossa voz 
Um ao outro nos chorámos. 
Dois desgraçados estando 
Um ao pé do outro, assim, 
Vão-se um ao outro chorando: 
Nosso mal vamos contando, 
Eu a elle, e elle a mim. 

Deixo-vos, mas no sentido 
Levo tudo quanto posso: 
O que foi visto e ouvido, 
A côr do vosso vestido. 
Tudo, porque tudo é vosso. 
Que o coração se não farte 
Nunca, nunca de lembrar : 
E parando em qualquer parte 
Parecer-me-á, d'est'arte. 
Que vos estou a fallar. 

Deixo-vos, sim, porque então 
Eu serei lembrado, e se-lo 
E' para o meu coração 
Tam grande bem, que a razão 
Diz-me que inda hei de perdê-lo. 



58 Náufrago 

Para o mal ser acabado 
E o fel ser todo bebido, 
Inda me falta um cuidado: 
Que quem agora é lembrado 
Seja depois esquecido. 

Deixo-vos d'esta maneira, 
Vossos logares eu ólho-os. 
Parto numa sexta-feira; 
Se não voltar — Deus o queira - 
Adeus, adeus, verdes olhos. 
E lembrando-me de quem 
Longe de mim ora deixo, 
Não ponho a culpa a ninguém: 
De mim sempre os males vem, 
De mim só é que me queixo. 



ENDECHAS DO RIO MONDEGO 



Tem a mesma qualidade 
do Tejo, de levar areias d' 
ouro. . . 

Duarte Nunes do Leão 



Com todo O socego 
Cantando o seu choro, 
Leva areias d'ouro 
O rio Mondego. 
Por entre pomares, 
Por entre olivaes, 
Já não volta mais, 
Corre para os mares. 



Já sei, raparigas, 
O que vós fazeis: 
D'esta agoa bebeis, 
São d'ouro as cantigas. 



6 o Náufrago 

O rio que cantas, 
O rio do choro, 
Levas na agoa ouro 
Que doura as gargantas. 



Visinha menina 
Do corpinho esguio. 
Bebe agoa do rio 
E a voz é divina. 
Todo o dia canta, 
Espalha sua mágoa; 
Bebeu d'esla agoa, 
Doirou-lhe a garganta. 



Ó lindas trigueiras 
Do meu coração. 
Pelo San João 
Cantaes nas fogueiras. 
Já sei, raparigas, 
O que vós fazeis : 
D'esta agoa bebeis, 
São d'ouro as cantigas. 



Náufrago Gr 



As barcas vão indo, 
Serranas da Serra ; 
E eu vejo-as da terra 
No rio subindo. 
Pescadores, vede, 
Deixae vossa mágoa; 
Botae redes na agoa, 
Vem ouro na rede. 



Ó rio com ar 
De seres d^outro mundo, 
Com ouro no fundo 
Que vae para o mar. 
Visinha menina 
Do corpinho esguio, 
Bebe agoa do rio 
E a voz é divina. 




«POR MARES NUNCA 

DE ANTES NAVEGADOS» 



No alto mar vão as perdidas caravéllas. . . 
Avante! Abri ao vento as velas! Descobrir! 
Abrem as ondas, esfaimadas, as guélas, 
(Avante! Avante!) para todos engulir. 

— Largae ao vento furioso as grandes velas! 

— Santa Maria nos proteja! (E o vento a rir. . .) 
Desmanteladas em cem mares por cem proceUas 
Lembram as velhas naus o seu sonho, ao partir. . . 

— Nunca mais te verei! diz uma voz chorando. 
Portugal, Portugal, adeus! adeus! adeus! 
(E os ventos uivam, tudo treme á sua voz) 

Vasco da Gama, em pé, alto e sereno, olhando, 
Domina a fúria da procella e diz aos seus: 

— E o mar, o mar que treme diante de nós. 



MAGRIÇO 



Cavalleiro ideal de amorosas empresas 
Flor de Aventura aberta ao sol de Portugal. 
Heroe ingénuo a defender Damas inglezas, 
O' sempre Puro, cavalleiro sempre Leal! 

Vestido d'aço, pluma ao vento, armas accêzas 
Ao sol, nesse combate, (ha pouco desigual. . .) 
Evóco-te! Senhor protector de fraquezas, 
Cavalleiro de Deus e do amor, espiritual. 

Ah! não ser eu um d'esses Doze vencedores! 
E em campo raso ou estacada, (linda morte. . .) 
Brilhar á luz a minha espada, numa chamma! 

Alma leal, vida leal, leaes amores. 

E um dia, como tu, diante d'uma Corte, 

Entrar na liça a combater — por minha Dama! 



o MEDO DOS CAMPOS 



O' medo de quem vae nas estradas passando 
Em noite negra, ouvindo as passadas que dá . . . 
Vê sombras compridas, vê coisas dançando, 
Vae pYa lhe tocar, sumiram-se já ! 



Caminho escuro que tem cruzes pelos lados, 
(Signal que ali alguém morreu, alguém mataram . . . ) 
Andam as alminhas cumprindo seus fados, 
São mortos, são mortos que resuscitaram ! 




06 Náufrago 

Ao pé d'esta oliveira os ramos que se abraçam 
Escondem um vulto.. . E treme e treme o caminhante! 
Vê sombras que passam, vê sombras que passam, 
Vão-se num instante, vão-se num instante! 



Ao pé do rio andam as bruxas ás risadas, 
(Coitadinho de quem a uma d^ellas faz mal. . .) 

E dão gargalhadas, e dão gargalhadas, . 

Olha acolá luzes naquelle pinhal ! 



Não batas tanto, coração ! Medo de quê ? 
Coração doido, porque vaes a galopar ? 

A gente tem medo, mas do que não vê . . 

Das coisas que andam de noite no ar! 



O' medo de quem vae nas estradas sósinhas, 
Sem companheiros, sem ter nada que o afoite. 

Rezae padre-nossos e salvé-rainhas. 

Que ha coisas de noite, que ha coisas d e noite . . 



Náufrago 67 

Quatro caminhos, ó sinistra encruzilhada ! 

(De noite é máo vohar-se a gente para traz. . .) 
O' cruz de caminhos, escuro da estrada, 
Nos quatro caminhos andam coisas más ! 



Cumprem fadário os lobishomens : de corrida 
Vão pelos campos disfarçados. Triste sorte! 
Senhora do Monte, Senhora appar'cida, 
Guiae-nos na vida, salvae-nos na morte. 



Uma noite, um cão preto (era o Demo) appar'ceu 
A certo homem, foi-o sempre a perseguir: 

E elle perdeu a falia, cahiu-lhe o chapéo 

E fez no ar cruzes p'ra elle fugir ! 



— Que bom seria estar em casa, sentadinho 

Ao lume. . . (Pensa o que assim vae de noite a andar...) 

E são tam máos sitios ! E^ máo o caminho ! 

PVa perder o medo pôe-se a assoviar. 



€8 Náufrago 

Lavrador no teu lar que tens medo ! E agora 

No teu telhado andam mexendo... Uivam os cães,.. 

P2 arrancam as telhas ! Quem anda lá fora ? 

São bruxas que roubam meninos ás mães 1 



Lavrador, lavrador, pinta cruzes de cal 
Nessas paredes do casal e nessas portas ! 
O' estradas escuras, Senhor! quem me valei 
O' medo dos campos, pelas horas mortas. . . 



?) 



VILANCETE DO POETA A DUAS 

SENHORAS 



Que olhos amarei mais: 
Olhos pretos de Luzia? 
Olhos verdes de Maria? 



Voltas 

Um dia, olhos pretos vi 
Que melhor fora não vêr, 
Que por elles me perder 
Me deixei ficar ali. 
Não sei o que então senti, 
Não bebia, não comia. 
Via os olhos de Luzia. 



70 Náufrago 

Mas, um dia, vi também 

Uns olhos verdes, que ao vê-los 

Me pareceram mais bellos 

Do que os olhos do meu bem. 

E assim fiquei eu já sem 

Saber que mais amaria: 

Se os pretos, se os de Maria. 



Verdes e pretos desejo, 
Uns e outros vou amando; 
Mas nos pretos scismo, quando 
Os olhos verdes eu vejo. 
São todos do meu desejo: 
Mas se olho os de Maria 
Vejo os pretos de Luzia. 



Olhos senhores de mim. 
Olhos de diversa côr. 
Se todos fallaes d'amor 
De quaes serei eu emfim? 
E esta alma doideja assim 
De olhos pretos de Luzia 
Para os verdes de Maria. 



Náufrago 7/ 



Os pretos são de trigueira, 
Os verdes, de que serão? 
Como hei de eu meu coração 
Repartir d'esta maneira? 
D'eiles é minha alma inteira: 
E dos pretos de Luzia, 
E dos verdes de Maria. 



Quero-os ir tirar á sorte, 
Mas é canceira perdida; 
Nelles está minha vida, 
Nelles está minha morte. 
Quero escolher, não sou forte: 
Escolho os pretos de Luzia, 
Escolho os verdes de Maria. 



E meus olhos namorados 
Confundem as duas cores, 
Que todos são para amores. 
Todos são para cuidados. 
Ó meus olhos enganados. 
São pretos os de Luzia? 
São verdes os de Maria? 



T2 Náufrago 

Não sei que olhos mais quero, 
Não sei que olhos mais amo : 
Por olhos verdes eu chamo, 
Por pretos me desespero. 
Vede meu destino fero : 
Amo os pretos de Luzia? 
Amo os verdes de Maria? 



MORRER MOÇO! 



Morrer moço é morrer quando se deve, 
Morrer com vinte annos : boa sorte ! 
Dorme-se bem na terra, o somno é leve, 
E tem pena de nós a própria Morte. 



E nunca a gente se faz velha: não 
Envelhece dos outros na memoria. 
Morrer moço é ficar no coração 
D^alguem, que ha de contar a no$sa historia. . , 



^4 Náufrago 

E quando os d'hoje envelhecerem, os 
Do nosso tempo que comnosco andaram, 
Hão de lembrar-nos e inda hão de vêr-nos 
Com as feições com que nos enterraram! 



— Ai que doçura vem d'essas passadas 
Coisas. . . (E os novos pedirão que contem...) 
E contarão nossas rapaziadas 
Como se todas ellas fossem d'hontem! 



Não ha dor, não ha dor que tanto fira 
Como a que heis de sentir, que é a saudade.. 
E vós que estaes na terra da mentira 
Lembrareis os da terra da verdade. 



E as raparigas que nos conheceram 
Novos, direitos, lindos estudantes, 
Lembrar-nos-ão: ellas envelheceram 
E nQs ficámos moços como d'antes! 



Náufrago j5 



E hão de suspirar, as raparigas, 
Então já velhas, já avós talvez! 
E hão de ensinar aos netos as cantigas 
Que lhe fizéssemos alguma vez. 



E inimigos nossos, bem capazes 

De nos apunhalar á falsa-fé. 

Hão de dizer que éramos bons rapazes, 

Que nos tiveram amisade, até! 



E outro cheio d'inveja, outro que ha 
Dito de nós horrores certo momento, 
Depois (como nenhum o ensombra já) 
Ha de dizer que tinhamos talento. 



Ah que bom, morrer novo! Desertar 
D'este mundo e fugir d'esta matilha! 
Os outros todos vão a corcovar 
E a gente, moça, nas memorias brilha . . , 



7^ Náufrago 

Que bom! ficar a gente sempre nova 
Sem se importar de nada, ali mettido, 
Sentindo andar por cima d'essa cova 
Os que d^antes nos tinham perseguido! 



E os que nos amem que por cá ficarem 
Mais nos amam depois, tendo saudades: 
E se os nossos defeitos alembrarem 
Hão de par^cer-ihes boas qualidades . . . 



Depois, hão de mostrar nossos retratos, 
Nossas cartas relidas, decoradas, 
E as nossas coisas, cheias de recatos. 
Como relíquias hão de ser guardadas . . . 



Ah que bom! ah que bom! Morte serena. . . 
Quando os nossos caixões forem passando, 
As raparigas pôem-se com pena 
A cor dos nossos olhos evocancjo. 



Náufrago yj 

Sempre alguém que nos ame ficará 

PVa se lembrar da gente; e esse alguém 

Quando fallar d'algum de nós, dirá 

Com lagrymas na voz — que Deus lá o tem ! 



CARTA 



Escrevo-vos sem saber 
Se aonde estaes chegarão 
Letras que vou escrever 
Num papel, que hade tremer 
Se estiver em vossa mão. 
Se com olhos apiadados 
Esta minha carta lerdes, 
Para bem dos meus cuidados 
Tereis os olhos molhados, 
E por baixo da agoa, verdes. 

Já três luas se passaram 
Dês que parti, como vistes; 
Mas os dias não mudaram: 
Elles triste m'encontraram, 
Eu achei-os sempre tristes. 



Náufrago yp 



Entra o sol pelo postigo; 
E mais um dia, Senhora, 
Qu'eu hei de viver comigo; 
O senhor meu inimigo 
Vae-te embora, vae-te embora. 

Ah, mal sabeis o que são 
Estes meus dias compridos, 
Em guerra com o coração 
E com a minha rasão, 
E com meus cinco sentidos. 
De mim fugindo, co'a pressa 
De ver se me não atento ; 
Com os males na cabeça 
E — inda que não vos pareça— 
Com o bem no sentimento. 

Ah, mal sabeis, mal sabeis 
O qu'é viver uma vida 
Que não vale cinco reis, 
Porque nunca sabereis 
Tanta tormenta perdida; 
E o qu'é ver, com terror, 
Passar dias, mezes, annos, 
Comendo e bebendo dor, 
Enganos e desenganos 
Com desengano maior. 



8o Náufrago 

Mas não é tanto o pezar 
Nem tanta a desesperança, 
Que vos não possa encontrar 
Dentro da minha lembrança 
Quando me ponho a lembrar. 
Na minha grande soidade 
E nesta desaventura, 
Viver com esta saudade 
Já é gran felicidade, 
Sendo tamanha tristura. 

Ora me ponho a escrever-vos 
Sem ler mesmo o qu^escrevi, 
Porque grande bem é ter-vos 
Na memoria, e poder ver- vos 
Com os olhos d'alma, ahí. 
Olhos de dentro, que abraçam 
Mares e terras, e vão 
Por onde os da cara não 
Podem olhar, e não passam: 
Olhos do meu coração. 

Sósinho com meu desejo 
De vos ter, de vos fallar, 
D^aqui muito bem vos veio: 
Vós ao pé do claro Tejo, 
Eu ao pé do verde mar. 



Náufrago 8i 

Mas sabei que viver quando 

Se vive como eu, assim, 

F] estar desesperando: 

Sei que vos estou lembrando, 

Mas alguém me lembra a mim? 

Ah, como sois alembrada 
Por Faonso, qu'é esquecido; 
Ah, como sois alembrada 
Cada noite mal passada, 
Cada dia mal perdido; 
Ande embora transviado 
Por mãos caminhos além. 
Por má cabeça levado; 
Pois é minha estrella, e fado, 
Fazer mal, pensando bem. 

Mão direita, pára, pára 
D'escrever, ah quem me dera! 
Antes ella s'entrevára. 
Que menos desesperara 
Se mais não ^screver pudera. 
Vede minha gran fraqueza 
Em qu'est'alma assim vae posta: 
Choro sobre a minha meza, 
Escrevo com mór tristeza; 
E não espero resposta. 



82 Nátifrago 

O coisa velha e sabida, 
Por tantos participada; 
Qu'é esta de ter a vida 
Pelo seu amor perdida, 
Pelo seu amor ganhada ! 
E quantos já o disseram, 
E quantos inda o dirão 
E quantos já o souberam: 
Tantos quantos desesperam, 
Tantos quantos saberão. 



CANTIGA 



De mim ando mal guardado, 
Nem cuido de me guardar 
Que onde estou está o cuidado 
Que em mais não deixa cuidar. 
De vos vêr agora venho, 
Mas num desconcerto tal 
Que ora por meu bem vos tenho, 
Ora vos tenho por mal. 



E esta tam grande mudança, 
Estes tam graves revezes 
Vem d'em vós pôr esperança, 
E desesperança outras vezes. 



84 Náufrago 

Vem de vós, que não de mim 
Pois leal e firme sou, 
Sendo aquelle que amei assim 
Alguém, que me desamou. 



E esta morte d'alegrias, 
E todo o cuidado assenta 
Em vós serdes como os dias 
Que ora sol, ora tormenta. 
Como julgarei a vida 
Que merece tantos dós, 
Se tendo-vos por vencida, 
Me não venço a mim, e a vós ? 



Já vencido, d'esta feita, 
Serei agora, e depois, 
Que por não serdes perfeita 
Inda mais amada sois. 
E como aves voantes 
Sejam meus olhos, Senhora, 
PVa quando forem distantes 
Virem onde estaes agora. 



ROMANCE 



Era noite escura, de ha muito fechada, 
Nem fonte gemia, nem gallo cantava. 

Que noite tam triste, quem por ella andava 
Ia depressinha, p'ra traz não olhava. 

Nem o sete-estrello pelo ceo brilhava. 
Nem estrellas d'oiro, nem lua de prata. 

Ai que noite escura, não se via nada, 
Nem fonte gemia, nem gallo cantava. 



86 Náufrago 

Mas dentro da casa onde alguém morava 
Ouviam-se vozes, levava-as o ar. 

Eram vozes tristes de quem se matava, 
Em dores vivia, em penas lidava. 

— «Que havia dez noites (a voz suspirava) 
Que havia dez noites que sempre chorava . . . 

Não tinha socêgo, nem olho pregava, 
Davam-lhe remédios, remédios tomava. 

Remédios, remédios não faziam nada. 
Era sempre o mesmo, nunca melhorava! 

Que havia dez noites (mui bem se alembrava) 
Que havia dez noites que sempre chorava. 

Pobres dos seus olhos que a agoa arrazava, 
Pobres dos seus olhos que o pranto quebrava. 

Eram fontes d'agoa, já quasi cegava. 

Que havia dez noites que iempre chorava !• 

Mas alguém passando ia pela estrada, 
Ouvindo taes vozes logo se quedava. 



Náufrago 8j 



De negro vestia, devagar andava, 

Com os doces olhos scismava, scismava. 



Ao pé do postigo da casa parava, 

E fallou pVa dentro para quem gritava : 

— «Que muito socêgo (por tudo jurava) 
Dava ás suas penas, a seus males dava. 

Que fosse com elle, logo descansava, 

Ai que rico somno, não mais accordava ...» 

Perguntam de dentro quem é que fallava,' 
Respondem de fora que a Morte ali estava. 

— t(Ai senhora Morte, já vos esperava, 
Levae-me comvosco, vamos de longada.» 

E á Morte todo, todo se abraçava,' 

— «Ai que rico somno!» e já não chorava, . . 

Já o sol nascera, já o sol brilhava, 
A fonte gemia, o gallo cantava. 



EGLOGA 

Inlerlocutores — Faonso^ Alpinto e Loscar 

Autor 

Encontraram-se num prado 
Ao anoitecer d'um dia 
Ao pé d'um rio calado, 
Pastores que a sorte trazia 
Cada um para seu lado. 
Tinham sido companheiros 
E ainda o eram ás vezes 
Quando nos mesmos ribeiros 
Dessedentavam as rezes, 
Ou guardavam os cordeiros. 

Rústicas frautas tangiam, 
E mais das frautas cuidavam 
Que dos gados que pasciam ; 
E n'isto se pareciam 
E não pelo que tocavam. 



g o Náufrago 

Ao Mondego os três pastores 
Em certo dia chegaram; 
Traziam ramos de flores, 
Mas depois todas murcharam, 
Ficaram ramos de dores. 

Mas depois de se encontrarem 
Começaram de se olhar; 
Depois de muito se olharem 
Pôz se o mais novo a fallar 
E os outros a escutarem. 
Sua falia começou 
Virando-se para os mais; 
Cada um p'ra ali se assentou 
Encostados aos bornaes. 
E o moço pastor fallou: 
Faonso — Amigos, que triste sorte, 
Que sina mal escolhida, 
Que máo fado, que máo norte, 
Faz que vós ameis a vida 
E a vida me seja morte? 
Vejo-vos tam descansados 
Como eu mesmo fui outr'ora; 
Éramos três desgraçados: 
Mas já o não sois agora, 
E não mudaram meus fados. 



Náufrago gi 



Pois sempre me alembrarei 
Que numa quadra já ida 
Vos vi, como só eu sei. 
Mas vós mudastes na vida 
E ai de mim, eu não mudei. 
Loscar, já te conheci 
Infadado com a sorte; 
Mas hoje vejo-te a ti 
D'oIhos serenos, e forte 
Como d^antes te não vi. 

Lembro-me, Alpinto pastor 
Das cantigas que cantavas: 
Era um mal, era uma dor 
Que os corações nos cortavas 
Com uma afflícção maior. 
Vejo-te também mudado, 
Esquecido d'esses pezares 
E longe do teu cuidado: 
Como quem mudasse d'ares 
E regressasse curado. 

Quando ao Mondego cheguei 
Com meus cabellos compridos 
E o rebanho que 'guardei, 
Fizémo-nos conhecidos 
Desde que vos encontrei. 



9 2 Náufrago 



Da minha terra trazia 
Tristes olhos que scismavam 
Toda a noite, todo o dia; 
E esta frauta onde soavam 
Saudades qu^então sentia v. 

Vim, como outros pastores, 
Sonhando com grandes prados. 
Sonhando campos de flores : 
Alimento para os gados 
E para os olhos amores. 
Vim como tantos, que sem 
Saudades d^aonde estão, 
Deixam o pae e a mãe, 
Socego do coração, 
E para o Mondego vêm. 

Depressa vi o engano 
E menos flores que abrolhos ; 
Envelheci nesse anno, 
Envelheceram meus olhos: 
Logo tive um desengano. 
Na minha frauta tocava 
Ao acaso, o que sahia; 
Mal a sorte me tratava: 
O meu rebanho morria 
E eu chorava^ e eu chorava. 



Náufrago g3 

Companheiros que guardaram 
Seus rebanhos por aqui, 
Nunca de mim se agradaram : 
Logo que isso percebi 
Meus olhos os desprezaram. 
Lembras-te, Alpinto, de quando 
Éramos mais odiados 
Que os lobos, se vão uivando 
Aos curraes roubar os gados 
E os cordeirinhos matando ? 

Não vi prados, flores, não 
Vi companheiros capazes; 
E eu e o meu coração 
Separados desde então 
Nunca fizemos as pazes. 
Lermo, experimentado 
Pastor, que ás vezes me via, 
Vendo*me a chorar calado, 
Como não comprehendia 
Julgava-me tresloucado. 

Como olhava bem de frente 
E a cabeça andava alta, 
Fui odiado da gente: 
Sempre me fez muita falta 
Ser dos outros differente. 



g4 Náufrago 

E no campo, os maioraes 
Vendo-me cantando assim, 
Designaram-me entre os mais: 
Não se agradaram de mim 
Nem dos meus modos leaes. 

Coisa que a outro daria 
Cuidado para uma hora, 
PVa mim era uma agonia, 
— E ainda assim sou agora — 
Numa noite envelhecia. 
Outros vejo a que cuidados, 
Trabalhos, maginações 
Deixam bem assocegados; 
Ah, como tão invejados. 
Por mim esses corações. 

Que máos olhos me fitaram 
Nessa noite em que eu nascia? 
E fadas não me fadaram, 
Mas bruxas ao pé havia 
Que logo ali me imbruxaram. 
Ando a correr o meu fado, 
O pranto a cara me alaga; 
Alguém, para meu cuidado. 
Ou me rogou uma praga 
Ou me deitou máo olhado. 



Náufrago g S 

Perdi assim a frescura, 

— E mais casos vos não conto — 
Casei-me com a tristura, 

E cheguei um dia a ponto 

De pensar na morte escura. 

Cantigas fiz eu então 

Que eram o meu sentimento ; 

Não sei bem p'ra que as fiz, não: 

Sabiam do coração 

E parava tudo em vento. 

E d'então para cá, vedes 
Que não pararam meus males : 
Tenbo fomes, tendo sedes. 
Ando por montes e valles 
E fallo com as paredes. 
Os meus dias, eu maldigo-os; 
Mas se vós estaes curados, 
Dizei-me por Deus, amigos. 
Gomo mudastes os fados 
Que vos foram inimigos? 

Ah, dizei-me pela rêz 
Melhor do vosso rebanho. 
Que santo o milagre fez, 

— Que foi milagre tamanho — 
P'ra lá ir por minha vez. 



g6 Náufrago 

Alpinto, que prado vistes, 
Loscar, onde estão as agoas 
Que fazem que os olhos tristes 
Se apartem das suas magoas? 
! Ah, dizei que coisas vistes? 

Alhnto — Andei como lu, á toa, 
Os mesmos males passei; 
Faltou-me a agoa e a broa, 
Mas melhorado. íiquei 
Desde uma certa hora boa. 
Vi alguém que procurava 
Ha muitos dias e mezes, 
E que nunca, nunca achava: 
Se a julguei achar ás vezes 
D^anles, é que me enganava. 

Foi naquella boa hora 
Que eu, todo sangue e poeira, 
Vi essa linda pastora 
Qu'éra das bandas da Beira 
E que sempre amei, e agora. 
Não tenho olhos p'ra a vida 
Nem p'ra esses homens vãos ; 
Com medo de a ver perdida 
Leva-me os olhos e as mãos: 
Não sinto a minha ferida. 



Náufrago g 7 



Não estou curado de todo 
Do antigo mal que me viste; 
Mas perdi o antigo modo 
Que já tive de ser triste, 
E me punha quasi doudo. 
Vae-me voltando a saúde 
E aos olhos o antigo olhar 
Que guardei emquanto pude. 
Agora, p'ra me curar 
Este amor terá virtude. 

Se queres esquecer, ama, 
Porque é o melhor destino : 
Nunca mais pisarás lama, 
De velho far-te-ás menino. 
Serão rosas tua cama. 
Procura por esses montes, 
Pela alcantilada serra 
Esse alguém a quem tu contes 
O que a nós dizes, e á terra 
E ás agoas frias das fontes. 
LoscAR — Vinha eu descendo um vai 

A' hora em que o sol inda arde, 
Maginando no meu mal, 
Por uma serena tarde 
— Que nunca vi outra egual — 



q8 Náufrago 

Vi que o meu gado se tinha 
Ajuntado a um rebanho 
Que para o meu lado vinha, 
Fazendo um só, d'um tamanho 
Que enchia o prado e a vinha. 

Vi mais alegre o meu gado 
E eu próprio mais me alegrei. 
E com os olhos procurei 
Quem houvera incaminhado 
Esse rebanho que achei. 
Vi quem p'ra ali o levava : 
E reconheci então 
Que finalmente eu achava 
Quem tinha no coração 
E de ha muito procurava. 

Sou feliz, mais te não digo. 
Pastor, adivinharás. 
Tem assim um encontro, amigo, 
FZ o socego ganharás 
Como aconteceu comigo. 
Desterrei males e penas 
De mim, desde aquella hora. 
Correm-me as horas serenas 
E os dois rebanhos, agora 
Eazem um rebanho apenas. 



Náufrago gg 

Nesse encontro do meu gado 
Com o outro que vinha andando, 
Verás tu a mão do fado : 
Vão-se as almas ajuntando 
Como os cordeiros num prado. 
Se queres esquecer, ama, 
Porque é o melhor destino: 
Nunca mais pisarás lama, 
De velho far-te-ás menino, 
Serão rosas tua cama. 



Autor 



Ficou Faonso sósinho, 
Foram-se os outros pastores. 
Pôz-se a andar pelo caminho, 
Que era coberto de flores 
De cheiroso rosmaninho. 
Agora, o triste scismava, 
Alheiado, ia scismando. 
Comsigo mesmo fallava, 
E estas vozes suspirando 
As arvores accordava: 



loo Náufraá>() 



Faonso 



P^ra que me hei de ir em cata 
D'amor, se um que senti 
Por uma cara de prata 
Me fez morrer, c morri, 
E a cada instante me mata ? 
Não quero d'elle lembrar-me, 
Nem o quero esquecer; 
Mas s'é elle que anda a matar-me, 
Elle que me faz viver, 
Como hei de d'elle apartar-me ? 

Bota sangue e^ta ferida, 
Para sempre o botará; 
Não muda assim uma vida, 
Pois quem na tem por perdida 
Nunca, ou tarde, a ganhará. 
Tempo passado e perdido. 
Tempo perdido e passado 
Por mim passado e solfrido. 
Tirei de ti meu sentido 
Sem tirar o meu cuidado. 



Náufrago loj 



Nunca assim viveu ninguém 
N'um desconcerto igual; 
Mas a culpa de mim vem : 
Apartei-me do meu bem, 
Corri atraz do meu mal. 
O' tristeza de perder-se 
Um grande bem que se tinha; 
O' tristeza de viver-se, 
O* tristeza de morrer-se, 
O' grande tristeza minha ! 



Autor 



Depois d'isto clle dizer 
Sem saber bem o que era, 
— Que amar é indoidecer — 
Começou a anoitecer, 
Já de todo anoitecera. 
Então, d'entre o ncvjeiro 
Uma figura se alçou ; 
Para o pastor caminhou 
Devagar, como um ribeiro 
Que a chuva não ingrossou. 



2 02 Náufrago 

Já pertinho d'elle estava 
E elle bem na conhecia ; 
Quiz fallar-lhe, e não fallava, 
Tocar-lhe, e não lhe tocava, 
Segui-la, e não na seguia. 
Via-lhe a alta figura, 
Branco pescoço delgado, 
Cara de tanta doçura 
Que o vê-la era um cuidado, 
E o não vê-la uma tristura. 

Pregado no chão a viu 
Passar com serenos passos, 
E tamanha dor sentiu 
Qu'estendeu pVa cila os braços ; 
E ella sem o vêr, fugiu. 
E como longe jii ia 
Disse Faonso: — Não fujas! — 
Mas ninguém lhe respondia, 
Só a agoa que corria, 
E o vento, e as corujas. 

Então partiu perguntando 
As arvores c ás fontes 
Se a tinham visto passando, 
Se por valles, se por montes, 
E aonde^ como e quando ? 



Náufrago j o3 



— Verdes olhos, onde cstacs? 
(Bradava Faonso, alto) 
Verdes olhos, onde estaes !^ — 
E os echos, num sobresalto, 
Punham-se todos aos ais. 

Ali o pastor lembrou 
Vozes que o aconselharam, 
E disse: — Aonde me vou? 
A elles amor salvou, 
A mim amores mataram. — 
E viu o que tinha sido: 
Viu uma casa num monte, 
Qu'era onde tinha nascido, 
E um álamo crescido 
Debruçado numa fonte. 

Assim se foi affastando 
Do logar aonde estava; 
Seu gado vinha balando, 
Parecia que chorava 
Os males do outro chorando. 
Muito longe se sumiu 
Aquella voz, pouco a pouco; 
Dizem que o pastor fugiu, 
Ou que anda quasi louco. 
Nunca mais ninguém no viu. 



SONETOS 



T)i:{er o que elle sentia^ 
em que queira^ vão me atrevo^ 
nem o chorar que fa^ia, 
mas as palavras que escrevo 
são as que elle di\ia. 

Christovam Falcão 



I 



lusíadas 



Lusíadas! Fechei o livro; oitavas 
Vibram dentro de mim, muito distantes. 
Por mares nunca navegados de antes, 
Meu coração, agora, navegavas. 

Vélas de Cliristo ao vento desfraldavas. 
Ao largo! ao largo I velhas nãos errantes! 
Deus proteja no mar os navegantes! 
Terror do vento, uivando! E as ondas cavas! 

Sonho, que foi enchendo Terra e Mar. . . 
E vejo a Ilha d'oiro. Assoviando 
Na alta gávea o doido vento chora. 

Coração! coração! ésocegar! 

E sobre o Poema fico-me scismando 

N^ desgraça de ter nascido agora. , , 



I 



Para o Q/ldriano de Sousa. 



II 



VOLTAR DA FESTA 



Na minha terra ha uma romaria: 
Quando pVa lá se vae, todos cantámos ! 
E um ^stantinho emquanto lá chegámos, 
Quando a Ermida se vê, é uma alegria! 

E ao sol, na alta serra da Abbadia, 
Ha foguetes e arcos com seus ramos. 
Pares p'ra a roda, vá! Todos dançámos, 
Gemem as banzas, canta uma Maria. 

E á volta, pelos lôbrcgo^ caminhos 
Vamos calados e já pouco resta 
Da alegria d'ha pouco, ao claro ar. 

Vamos calados, todos tam sósinhos! 
E bom partir a gente p'ra uma festa, 
Mas ç triste, depois, ter de voltar. . . 



III 



BERNARDIM RIBEYRO 



O triste Bernardim, irmão das fontes 
Que cantam, sem ninguém nas ensinar! 
Na alta serra te vejo olhando o mar, 
De olhos longos nos verdes horisontes . . . 

E vives lá nesses frolidos montes 
D'onde é mais puro o céo, mais claro o ar; 
E as arvores põem-se a escutar 
Tuas saudades, para que lh'as contes. 

Tuas magoas, apegos e cuidado 
Melhores são que as nossas alegrias, 
Gomo eu entendo bem essa tristeza! 

Que boa sina a tua : ser amado, 

Internecer as duras penedias 

E morrer por amor diurna Princeza. . . 



J^CiVã o Alberto Costa. 



IV 



os MELHORES DIAS 



Meus dias vão correndo : e os olhos párarrj 
Para os ver, um a um, para os ver ir. . . 
Sua lembrança em mim vae-se a sumir 
E os máos dias em bons se transformaram. 

Cuidados que passei, cm mim ficaram; 
Mas lembrá-los c doce de sentir: 
E se ha males nos dias que hão de vir, 
Ha sempre um bem nos dias que passaram. 

Como se eu cheirasse velhas flores 
Tenho saudades de passados dias, 
Sua memoria em mim vive também. 

Dias ha onde estão nossos amores. 
E inda as nossas futuras agonias, 
Vendo-as passadas, nos serão um bem. 



V 



os NICHOS 



Pobres nichos devotos (como alminhas) 
Que ha por este Paiz, nessas estradas . . . 
Lembraes ninhos por cima de sacadas, 
Lares aconchegados de andorinhas. 

O minha devoção, íernuras minhas, 

Ao pé d'eiies vós sois resuscitadasl 

E eu amo-os mais que ás cathedraes lançadas 

Aos altos céos, em complicadas linhas. 

Rescendem cravos, rosas perfumando; 
E num copo d'azeite uma luz arde 
Ao pé da Virgem, toda num perdão. 

Luzem á noite pelos campos, quando 
Recolhe a gente a casa. . . Deus nos guarde! 
Nichos devotos ! Portugal christão ... 



VI 



FOI PARA ISTO? 



Um velho que morreu (e meu amigo) 
Mal eu sabia ler ainda, um dia 
Deu-me a ler um Poema, aonde eu lia 
Uns casos, que se davam bem comigo. 

E inda me lembro bem d'isto que digo: 
Li versos, que depois de cór dizia . . . 
Adivinhava, não comprehendia, 
Dava-me scismas esse Livro antigo 1 

Cresci sonhando nelle ; e o que sonhava 
Eram as coisas grandes que aprendera 
No livro bruxo, e tantas, que nem sei . . . 

Achei-me homem um dia, e alto estava; 
Antes, Senhor, eu nunca ler soubera ! 
Foi então para isto, que eu sonhei? 



VII 



só COM O CORAÇÃO! 

Puz de banda os meus livros, e guardei 
Apenas um, que na memoria tenho ; 
Deitei a correr montes meu rebanho, 
E se não estou melhor, não peiorei. 

Do que li nunca mais me lembrarei; 
Cavo a terra e o meu campo lavro e amanho, 
E se o meu mal ficou do seu tamanho, 
Só do meu coração me importarei. 

Não ouço o que a cabeça me disser, 
(Minha inimiga e meu maior tormento) 
Porque ao mal me levou que esta alma trilha. 

Com o meu coração quero viver. . . 
Inda que cheio vá de infadamento 
E ande contente só por maravilha. 

8 




VIII 



DO OUTRO MUNDO 



Gomo é triste mexer numa gaveta 
Onde havia papeis, cartas antigas : 
Escreveram-nas mãos de raparigas 
E hoje os papeis têm todos tarja preta! 

i(AmO'te tanto, tanto !^ E d luz quieta 
Diurna saudade faço estas cantigas ; 
Minhas saudades, minhas inimigas, 
Basta sentir- vos para ser um Poeta ! 

i(Sou tua para sempre. > E as mãos entornam 
Na mesa as cartas. « Virás hoje, sim ?» 
E os olhos para traz parados tornam. 

E ha phantasmas á roda : corações 
Mortos com azas voam até mim . • . 
Velhas gavetas, sois como caixões ! 



IX 



A BORDO DA NAU 
«SAN-RAPHAELi» 



Noite de estrellas. Tempo socegado. 
Passa ao rés vés das agoas uma aragem. 
Vae dormindo e scismando a marinhagem, 
Cada um imaginando em seu cuidado. 

Todos o bom Paiz fazem lembrado, 
Do Portugal distante a clara imagem. 
Torná-lo-ão a vêr depois da Viagem? 
Sabe-o Deus! O Senhor seja louvado! 

Vae a nau proseguindo. Incham as velas. 
O mar de todo agora se calou. 
Ha no ar uma nuvem de tristeza. 

Então, sob o alto céo claro d^estrellas, 

Velloso sua historia começou : 

« — Entre as Damas gentis da corte ingleza. . . » 



BONS AVÓS 



Viveram meus Avós na Extremadura 
N uma aldeia que um rio atravessava. 
Cada um suas terras amanhava 
E em casa havia pão, vinho, fartura . . . 

E levavam a vida muito pura 
De quem da vida as coisas ignorava : 
Semeiavam a terra e a terra dava, 
E seus gados pasciam na verdura. 

Nunca sahiram do seu bom casal! 
Eram fortes, alegres lavradores, 
Amando a terra, semeiando a graça. 

Porque não sou eu hoje um seu egual.^ 
E vejo, olhando para as minhas dores. 
Como degenerei da minha raça . , , 



Xi 



os DESGRAÇADOS 



A vida? é já banal ir maldizê-ia! 
Trabalho inútil, vão, raiva perdida : 
Que é má, é uma coisa já -sabida; 
Estamos todos fartos de sabê-la! 

Mas julgam todos que é peior a estrella 
Que os fadou para o mundo, para a vida . . . 
E cada um que tem uma ferida 
É o maior desgraçado, por soffrê-la. 

Vejo gente nas ruas, descuidada. 

Cuja sorte eu invejo. Passo e ólho-os . . . 

E, sei lá! pôde ser bem desgraçada! 

E a mim mesmo, quem sabe? ha quem me veja 
Como um feliz que passa . . . E esses olhos 
Hão de olhar para mim, cheios d'inveja! 



XII 



AO SOL! 



Sol do paiz de Portugal, ó mais 
Claro, pVa alumiar glorias e amores ! 
O amigo maior dos lavradores, 
Alegria de montes e casaes! 

Do alto céo, d^onde p'ra a terra cães, 
Sol das batalhas, desvairadas cgres ! 
Leva de nossos peitos nossas dores, 
Faz-nos saudáveis como bons trigaes . . • 

Ó sol, que andas n'essa eterna viagem ! 
Olha pVás almas : são todas viuvas . . . 
Pôe-nos frolidas como bem-me-queres ! 

Sol! dá-nos vida! Sol! dá- nos coragem! 
Ó sol, ó sol que pintas d'oiro as uvas 
E fazes moreninhas as mulheres . . , 



XIII 



PARA OS VERDES OLHOS 

LEREM 



Verdes e tristes olhos, d'onde veio 
Este amor que a mim todo me tomou, 
Já não fujo de vós porque já sou, 
Senhora minha, d^elles todo cheio. 

De vós se aparta agora com receio 
De vos perder, quem tanto vos ganhou : 
Porque por toda a parte vos buscou 
E só vos foi achar da morte em meio. 

Vereis, Senhora, quando me alembrardes, 
Que ao pé de vós serão ao minhas mágoas, 
Felizes por juntinha d^ellas serdes^ 

E eu verei na doçura doestas tardes. 
Neste céo, nestes montes, nestas agoas, 
Os vossos saudosos olhos verdes. 



XIV 



■vv 



SAUDADES DO BEM 



Bem, que foste meii bem só um momento 
Pois logo tinha de te vêr perdido, 
Tirei de ti já todo ò meu sentido, 
Só de lembrar-te agora me contento. 

Atraz de ti se vae meu pensamento 

E lembro^nie de ter- te possuido : 

De te escutar recórda-se o ouvido 

E os olhos de te verem feito em vento. . 

A procurar-té, já' sem esperança, 
Sena te ver neni óuvír, cuido passar 
Horas que me fizeram menos triste. 

De ti só me ficou esta lembrança : 
O cuidado que puz em te guardar 
E a saudade, depois que me fugiste. 



XV 



NÃO QUIZ MINHA VENTURA! 



Este bem, que era o meu, e que passou, 
Só o tempo durou de o ver passado: 
E mais saudades este me ha deixado 
Do que outro alguma hora me deixou. 

Tudo o que ledo um dia me tornou 
Em mais saudoso e triste me ha tornado; 
Tudo se m'afigura já mudado, 
E afinal fui eu só quem já mudou. 

Velhas palavras, e sabida historia ! 
Nada sereis, bem sei, para ninguém 
Porque sois a verdade, uma amargura. 

Perde, meu coração, tua memoria: 
Que podes tu fazer para meu bem 
Se não quiz o meu bem minha ventura? 



XVI 



PARA O LUME! 



Febre de produzir! Passar os dias 
E as noites aziagas trabalhando! 
O poetas, que andaes desinterrando 
P'ra as pôr em verso, as vossas agonias! 

Passa gente lá fora. . . Ha romarias: 
Para lá vão os oiitroSy rindo e amando. . . 
O doidos que ficaes, sós, evocando 
Saudades! ó coveiros d^alegrias! 

Tédios da obra ! duvidas ! e vêr 

A- estupidez dos mais ! o azedume 

De todos! Meus irmãos, doidos! parae. . . 

Falhos na vida, basta de soffrer : 
Atirae estes versos para o lume ! 
Queimae o que fazeis. . . Queimae! Queimae! 



RAÇA DE NÁUFRAGOS 

Agarrados ás táboas do Navio, 
Ingólcm-nos as ondas! Assim vamos, 
Da Arvore d'oiro apodrecidos ramos. 
Mortos de fome e sede. . . e o vento é frio! 

Avançam ondas : uma e outra, a fio, 
PYa longe nos arroja. . . E nós gritamos! 
Coragem, vá, que todos nos salvamos! 
Impossível! O meu vigor, pcrdi-o. . . 

Corpos sem alma, que ficou esquecida 
Longe de nós, por esse Mundo fora 
A deixámos aos poucos repartida. 

Que faremos. Senhor? Para onde ir? 
Que havemos todos de fazer agora 
Se não temos o Mar pra descobrir? 



INDEX 



Dedicatória 3 

PORTUGUFZ d'H0JE 5 

Da minha janella 9 

O Fad ot 1 5 

Carta ao Alberto?T '. . . 19 

Para o Brazil 25 

Cantigas.^T 29 

As NausV 37 

A Fabrica 41 

Expostos 46 

A' Senhora do Mar, ou das Ondas 49 

Do Poeta a uma Senhora de quem se apartava 53 

Endechas do rio Mondego 59 

«Por mares nunca de antes navegados» 62 

Magriço 63 

O medo dos Campos 65 

VlLANCETE do PoETA A DUAS SeNHORAS 69 

Morrer moço ! yS 

Carta 78 

Cantiga 83 

Romance 85 

Egloga.. ; 89 

Sonetos io5 

JIaça de Náufragos 12^ 



LH^ 




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A<^'^^..